CRÔNICA DE ANNA MAGDALENA BACH - RARÍSSIMO - - Reliquias em DVDs
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CRÔNICA DE ANNA MAGDALENA BACH - RARÍSSIMO -

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CRÔNICA DE ANNA MAGDALENA BACH Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, Chronik der Anna Magdalena Bach, Alemanha/Itália, 1968 LEGENDADO Apenas algumas notas: - Na época em que a obra de Johann Sebastian Bach floresceu, as artes se correspondiam entre si; participavam, digamos assim, de um mesmo espírito do tempo. O filme de Straub e Huillet demonstra isso através da articulação fundamental entre música e arquitetura. A música de Bach é composta de acordo com o espaço onde será ouvida. Compor para uma igreja barroca não é a mesma coisa que compor para o salão de um nobre. A voz de sua esposa Anna nos informa sempre para qual espaço – e em que contexto, sob que condições – a música que ouviremos na cena seguinte foi pensada e concebida. Redundante dizer que Crônica de Anna Magdalena Bach é um filme materialista. Vemos a música no espaço, uma coisa implicando a outra. E se a partir de um determinado momento tomamos conhecimento do fato de que a visão de Bach se acha afetada, as conseqüências serão sentidas imediatamente. Ele está perdendo progressivamente a visão. É justamente segundo esse percurso que Straub constrói a fotografia do filme: a luz vai passando do espaço para uma sensação do espaço. - Luz, em Crônica de Anna Magdalena Bach, é sinônimo de composição. Se em A Morte de Empédocles ou Moisés e Arão Straub encara a luz como matéria sólida a ser esculpida, e se em Gente da Sicília é possível ver as montanhas como massas impregnadas de calor, proeminências de terra que absorveram sua parcela de sol e tiveram a generosidade de partilhá-la conosco, o que notamos em Crônica é que a luz já está indicada nas partituras e nos espaços onde a música de Bach é executada. Straub apenas se aplica em distribuir essa luz. Ele trata o quadro como gravura: a luz se espalha uniformemente pelo espaço e os corpos, linhas e figuras laboriosamente dispostos no plano retêm ou dispensam luz, exatamente como os sulcos burilados na lâmina de cobre e as partes desta que permaneceram lisas reteriam ou dispensariam tinta na gravura calcográfica. Aquela diagonal desconcertante do plano do refeitório, por acaso ou não, lembra o famoso São Jerônimo de Albrecht Dürer, em termos de composição e tensão das linhas. - Impossível não falar do primeiro plano do filme. Parece que o travelling foi inventado para que pudesse existir aquele plano. Após alguns minutos fechado somente em Bach tocando o cravo, o plano se abre por um travelling para trás e reconhece que há um espaço à volta dele, e que há outros músicos nesse espaço. O movimento de câmera começa no exato instante em que a música solicita a participação dos outros instrumentistas. É um movimento obediente, pois segue a demanda da música e, portanto, do espaço. É também a relação de Bach com o entorno, do indivíduo com a comunidade, do gênio com o mundo – tudo dado de um só golpe. “Se o acordo de um gesto e de um espaço é a solução e a conquista de todo problema e de todo desejo, a mise en scène será uma tensão rumo a esse acordo, ou sua imediata expressão” (Michel Mourlet). O que temos aqui é da ordem da “imediata expressão”. Antes do travelling, os dedos de Bach agindo sobre o teclado são o grande ponto de atração do nosso olhar. A música está vindo dali, daquela incessante micro-movimentação. Se não houvesse uma rigorosa educação mecânica dos dedos, a música não sairia daquele jeito. Somente esse esforço mecânico – que se opõe à idéia romântica de uma arte cuja perfeição viria espontaneamente ao encontro do gênio – pode fazer a música de Bach ser transmitida do seu espírito para o nosso. Da mesma forma que na arquitetura barroca as diversas partes da construção não estão mais separadas nitidamente entre si, mas se confundem criando efeitos de massa e ondulações, na música que Bach executa no plano de abertura de Crônica as notas se ligam todas num continuum transbordante. Num plano já bem mais adiante no filme, a câmera faz um movimento que vai dos dedos em direção ao rosto de Bach. O sentido é inequívoco: é o músico que está reagindo à música, e esta, por sua vez, está partindo das mãos – portanto, da periferia sensitiva do corpo – e subindo rumo ao cérebro. - Sempre bom lembrar: as cenas musicais de Crônica são filmadas com som direto. Bach é vivido no filme por Gustav Leonhardt, um de seus maiores intérpretes. - Dois dos momentos mais marcantes de um outro filme de Straub e Huillet, Gente da Sicília (1999), merecem ser lembrados também: 1) aquelas lentas panorâmicas filmadas do alto de um morro de onde se vêem belas paisagens naturais, que se repetem em diferentes horas do dia; 2) as tomadas feitas da janela do trem em movimento. Podemos ver planos praticamente idênticos num filme de cinco minutos e algumas poucas tomadas chamado Sicilia Illustrata, feito por Arturo Ambrosio em 1907. Straub e Huillet viram o filme de Ambrosio? Provavelmente não. Se esses dois filmes – rodados no mesmo lugar, porém em épocas diferentes e por pessoas diferentes – puderam produzir praticamente os mesmos planos, foi por um motivo muito “simples”: ambos proporcionaram o desocultamento de uma imagem que já estava lá, cravada na paisagem – captaram a tal “fotografia já tirada nas coisas” de que Bergson falava. Lançaram-se à apreensão do mundo, e não à de seus prolongamentos subjetivos. Essa “fotografia” implícita na paisagem é o elemento que guia a câmera, induz a panorâmica. Nem todo cineasta, entretanto, poderia causar tal “coincidência”. Se o interesse de Straub fosse o devir movente das coisas, provavelmente ele não teria filmado a mesma Sicília de Sicilia Illustrata, ele teria filmado já outra coisa, as águas de um outro rio. Straub, contudo, filma o ser das coisas. Por isso ele pode repetir o mesmo plano de um registro feito mais de noventa anos antes sem nem conhecê-lo. O plano, para Straub e Huillet, é uma reentrância da matéria, olhar que se introjeta para dentro dela. Processo oposto ao de Rossellini, para quem o plano é uma saliência da matéria, e portanto se projeta de dentro dela. Straub e Huillet perscrutam o antepassado das coisas, algo cuja presença se acha no limiar do infra-sensível, um estofo silencioso, somente acessível a um olhar “pré-humano”. O cinema de Straub busca o lúmen das coisas, deixando que elas enviem luz ao filme, e não o contrário (“às vezes é a coisa que olha para o pintor”, Merleau-Ponty já dizia a respeito de Cézanne). Mas por que falar dessa conexão entre Gente da Sicília e um filme dos primórdios do cinema, afinal de contas? Para tentar explicar que, pela natureza mesma do cinema de Straub/Huillet, Crônica de Anna Magdalena Bach poderia ter existido já no primeiro minuto após a criação do cinematógrafo. Talvez a verdadeira modernidade seja a eterna capacidade de recomeçar, de recuperar o impulso original de uma arte em qualquer época da sua história. - Julio Bressane, que acharia perfeitamente normal um filme de 1907 possuir os mesmos planos de um filme de 1999 (uma “cinemancia” básica), possui um ótimo texto sobre Crônica de Anna Magdalena Bach. O trecho a seguir demonstra uma compreensão certeira do filme: “Os planos-seqüência, com câmera imóvel, intensificam a proximidade do filme com seu centro de força. […] Ao invés da multiplicidade de imagens (notas musicais), arabescos e contorções, de uma câmera que explore todos seus recursos de compreensão e apreensão da luz, Straub contrapõe ao ofuscante barroco musical um plano fixo, com seu rigor barroco, barroco aqui presente na ausência de movimento de câmera, o excesso na secura da câmera, em concentração máxima, redução máxima, extremista, explosiva” (em Fotodrama, Rio de Janeiro: Imago, 2005). - A visão do filme em película reforça a impressão de que a fotografia foi fortemente inspirada em Como Era Verde Meu Vale (John Ford, 1941). Não só pela luz esbranquiçada, mas pelo tanto de chão e de teto que pode caber em cada plano. - A duração “em ouvido absoluto” (Bressane) dos planos-seqüência musicais de Crônica de Anna Magdalena Bach produz uma reta temporal por onde transitam – o paradoxo é de todo fascinante – as curvas da partitura. A música de Bach empresta uma forma à duração, cria “um sentimento sobre o tempo”.

legendado

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