Muito Prazer - Reliquias em DVDs
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Muito Prazer

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Sobre Muito Prazer, David Neves conversava com Alex Viany: "Eu queria fazer um filme onde os adultos fossem vistos pelas crianças". Mais tarde, referindo-se a seu novo projeto, o de Fulaninha, ele continua: "Agora, eu estou escrevendo um roteiro que é uma espécie de segunda parte de Muito Prazer. Chama-se Fulaninha. Em vez dos pivetes, é uma menina (...) que observa os homens. É uma coisa muito simples; quatro homens que bebem num botequim. Ela passa religiosamente por ali e eles prestam atenção nela, e ela neles. São as quatro versões deles sobre ela e a versão dela, a verdadeira, sobre eles e sobre si mesma."1 O que, de primeiro, fica claro nos dois projetos, é a natureza especular da estrutura: o que importa são os olhares que se cruzam, que se rebatem e se refletem. Muito Prazer é a primeira parte da autodeclarada trilogia sobre a Zona Sul carioca (os filmes que continuam a série são Fulaninha, 1985, e Jardim de Alah, 1988). Estranhamente, a Zona Sul de David Neves não parece com nenhuma outra Zona Sul do cinema brasileiro (exceto, talvez, a de Hugo Carvana num filme como Bar Esperança): não é a localidade rica e glamourizada nem a paisagem do cartão postal, mas um local de encontros, onde a classe média-alta quarentona e um pouco decadente deve conviver com a classe baixa (ou melhor, miserável) dos meninos de rua que descem as favelas da região para vender bugigangas no sinal ou, em casos extremos, praticar pequenos furtos. O universo de um grupo povoa o outro: os meninos olham para os adultos (sabem que a esposa de um troca de roupa diante da janela, cogitam acerca da sexualidade dos arquitetos e de suas esposas), e os adultos sonham com os meninos (Cecil Thiré tendo pesadelos em que sua esposa e a esposa de seu amigo eram despidas e dominadas pelos meninos). Esse retrato tão pessoal e ao mesmo tempo tão agudo, autêntico sobre a Zona Sul se deve à estruturação do argumento: as interações causadas por um único espaço geográfico, o dentro e o fora de um escritório de arquitetura em frente à Lagoa Rodrigo de Freitas, elitizado espaço geográfico da cidade. Do lado de dentro, três homens incompletos: um bebe doentiamente, fugindo de seus problemas; outro tem o casamento sobrevivendo apenas por protocolo; e outro é tão reservado sobre sua vida pessoal que desperta as suspeitas dos colegas. Do lado de fora, três garotos de rua que devem ganhar o pão e conseguir o circo no mesmo lugar, nas calçadas e nas praças do bairro. Obviamente, é entre o dentro e o fora do escritório que se criam as tensões: na figura do porteiro, que vive entre os dois mundos e pode sofrer por isso (recebe uma bronca por dar água aos meninos na área do escritório); na figura do entorpecido Ivan que, bêbado como um gambá dentro de seu carro, recebe uma esguichada de ketchup, cortesia da traquinagem dos meninos; ou no extremo do relacionamento, quando dois dos meninos decidem utilizar da livre iniciativa do furto e escurraçam o menino que não quer fazer parte do negócio. Mas Muito Prazer não é apenas uma pequena fábula social. Se há sempre o inevitável encontro de classes, o filme sabe também penetrar profundamente na crise de meia idade dos personagens adultos, pintando sem eufemismos as mudanças de humor que podem levar alguém a afundar no alcoolismo ou declarar-se publicamente apaixonado pela mulher do sócio. A leveza com que David Neves encontra o tom perfeito para cada cena faz com que aquilo que poderia ser um retrato moralista sobre envelhecimento & decadência se transforme num afresco amargo mas aberto à vida, uma pequena comédia humana onde cada comportamento, certo ou errado (o filme em nenhum momento julga com a câmera, algo de raro no cinema), longe de ser algo de condenável, é sempre algo que experimentamos como se fossemos nós mesmos na pele dos personagens, como se cada um deles fosse um possível alter ego nosso. Falar de Muito Prazer, entretanto, não seria completo sem que se falasse na grande atuação de todos os intérpretes, indo das majestosas interpretações profissionais de Ítala Nandi e Otávio Augusto até as impressionantes participações de Paulo Cezar Saraceni e dos meninos, entre eles Irving São Paulo e Gonçalves, que se tornou mais tarde zagueiro do Botafogo e da seleção brasileira. Há uma intimidade tamanha da equipe com os atores que toda cena de entrega, todo momento delicado deixa de ser uma invasão da privacidade para tornar-se momento universal, partilhável pois que estamos com eles junto, participando de tudo. Todas as cenas entre quatro paredes, sobretudo aquelas em cima de uma cama – seja no sexo, seja na tentativa frustrada de sexo, seja no sono pós-adultério – estão entre as mais belas coisas já filmadas no país, sob qualquer aspecto. Muito Prazer é o ápice na filmografia de David Neves, o momento privilegiado em que o cineasta conseguiu juntar todas as suas preocupações velhas (as mulheres, o fragmentário) e novas (a Zona Sul, a vida boêmia) para entregar um testemunho pungente sobre a vida que passa, sobre os caminhos e necessários descaminhos de uma vida que muda constantemente e jamais é dada de antemão. Se o filme causa uma sensação tão forte em todos que o assistem, é porque todos os atos duvidosos, todos os gestos condenáveis – e em Muito Prazer eles brotam em profusão – aparecem sempre como possíveis, como se, por trás deles, houvesse uma suave mão aberta, compreendendo sempre todas as decisões de cada um dos personagens. David Neves mostra em Muito Prazer que sabe ser como os maiores, como Stendhal ou Balzac ou Oliveira: um artista da perspectiva, da causalidade inevitável. Para terminar, não poderíamos deixar de notar uma recorrência: da mesma forma que em Mauro Humberto, em momentos parece que certas cenas só existem para homenagear e eternizar certos encontros. Assim, Alex Viany e Nélson Cavaquinho aparecem em participações pequenas (a de Viany é mínima) mas precisas. Essas homrnagens, por mais tênues que sejam, levam a crer num possível axioma para David Neves: o cinema é uma questão de amizades.

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